A reforma do CPC e a efetividade do processo
(tutela antecipatória, tutela monitória e tutela das
obrigações de fazer e de não fazer)

LUIZ GUILHERME MARINONI
Professor de Direito Processual Civil dos Cursos de Mestrado e
Doutorado em Direito da UFPR. Advogado em Curitiba.

 

 

 

            PRIVATE1. A recente reforma do Código de Processo Civil, marcada pelo drama da morosidade da justiça, traz novidades que permitem concluir que o legislador – ciente da inefetividade do procedimento ordinário – apostou na superação de conceitos fundamentais do processo civil clássico para dar efetividade à tutela dos direitos.

            Uma abordagem conjunta das três principais inovações trazidas pela reforma obviamente não permite uma análise aprofundada, mas certamente deixa espaço para que seja evidenciada a relação de cada uma delas com a temática da efetividade do processo.

 

            2. A falta de sensibilidade para a necessidade de adequação do processo ao direito material conduziu à universalização do procedimento ordinário. Em uma determinada época, a instrumentalidade do processo foi confundida com neutralidade do processo em relação ao direito material; seria necessária apenas uma espécie de procedimento, e este, acreditou-se, teria aptidão para propiciar tutela adequada às diversas situações de direito substancial.

            A inefetividade do procedimento ordinário transformou o artigo 798 do Código de Processo Civil em autêntica válvula de escape para a busca da tutela jurisdicional adequada. A tutela cautelar transformou-se em técnica de sumarização e, em última análise, em remédio contra a ineficiência do procedimento ordinário. A utilização indiscriminada da tutela cautelar surgiu como uma conseqüência da superação da ordinariedade, e da tendência, daí decorrente, à busca de tutelas sumárias, entendidas estas como aptas à obtenção de uma sentença rápida e capaz de tornar efetivo o direito material.(1)

            A tutela cautelar, pois, passou a ser o veículo de todas as formas de manifestação da tutela sumária urgente. A tutela antecipatória, então, foi tratada como tutela cautelar, embora essa última tenha por fim apenas assegurar a viabilidade da realização do direito. É claro que esta distorção foi fruto da necessidade de celeridade e, em outras palavras, da exigência de efetividade da tutela dos direitos. Mas era necessária a sistematização das formas de tutela sumária. Tal sistematização foi resultado da manifestação da técnica processual a serviço dos ideais de efetividade do processo e, portanto, de efetivo acesso à ordem jurídica justa.

 

            2.1. É importante distinguir a tutela cautelar da tutela antecipatória. A provisoriedade não é nota que atribui característica à tutela cautelar. A execução provisória fundada em periculum in mora é provisória e nem por isso é cautelar. A tutela cautelar não pode satisfazer, ainda que provisoriamente, o direito acautelado. A tutela cautelar não pode assumir uma configuração que desnature a sua função, pois de outra forma restará como simples tutela de cognição sumária, ou, como, bem advertem Satta(2) e Verde,(3) "il provvedimento urgente in urgenza di provvedimento". A tutela cautelar é marcada pela característica da referibilidade. Aquele que pede tutela cautelar faz referência, obrigatoriamente, a um direito ameaçado, ou seja, ao direito que deve ser acautelado. A utilidade da tutela está na proteção do direito ameaçado. Se inexiste possibilidade de referência a um outro direito, não há tutela cautelar; há satisfatividade.

 

            2.2. A recente reforma do Código de Processo Civil introduziu em nosso direito a tutela antecipatória (artigo 273). O artigo 273 permite a obtenção da tutela antecipatória em duas hipóteses: (a) quando há "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação" (art. 273, I); e (b) quando "caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu" (art. 273, II).

            A tutela antecipatória rompe com o princípio da nulla executio sine titulo, fundamento da separação entre conhecimento e execução. É importante lembrar que Chiovenda, ao constatar a separação entre a definitividade da cognição e a executoriedade na execução provisória da sentença, afirmou ser essa última "uma figura anormal, porque nos apresenta uma ação executória descoincidente, de fato, da certeza jurídica."(4) O princípio da nulla executio sine titulo, como se vê pela lição de Chiovenda, tinha como base a falsa idéia de que um direito somente pode ser realizado após o encontro da certeza jurídica, ou após ter sido declarado. Essa idéia, fruto do mito da busca da verdade, foi desmoralizada pelo uso da tutela cautelar para a realização antecipada dos direitos. Na realidade, as necessidades do direito substancial, amparadas pela prática forense, demonstraram plenamente a falsidade da premissa aceita como dogma pela doutrina chiovendiana e mesmo pela doutrina pós-chiovendiana.

            A técnica antecipatória visa apenas distribuir o ônus do tempo do processo. É preciso, portanto, que os operadores do direito compreendam a importância do novo instituto e o usem de forma adequada. Não há razão para timidez no uso da tutela aimaginam que ele não erra – para assumir as responsabilidades de um novo juiz, de um juiz que trata dos novos direitos e que também tem que entender – para cumprir a sua função sem deixar de lado a sua responsabilidade social – que as novas situações carentes de tutela não podem, em casos não raros, suportar o mesmo tempo que era gasto para a realização dos direitos de sessenta anos atrás, época em que foi publicada a célebre obra de Calamandrei,(5) sistematizando as providências cautelares.

 

            2.3. O artigo 273 afirma que o "juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação." Embora o artigo 273 fale em prova inequívoca, é necessário apenas que reste demonstrando o fumus boni iuris. O autor, ao requerer, na petição inicial, a tutela antecipatória, pode se valer de prova documental, de prova testemunhal ou pericial antecipadamente realizada(6) e de laudos ou pareceres de especialistas, que poderão substituir, em vista da situação de urgência, a prova pericial. O autor ainda pode requerer sejam ouvidas, imediata e informalmente (vale dizer, nos dias seguintes ao requerimento de tutela), testemunhas ou o próprio réu, bem como pedir a imediata inspeção judicial, nos termos do artigo 440 do Código de Processo Civil. Não há dúvida de que não é apenas a prova documental que permite a concessão da tutela antecipatória. A verossimilhança pode ser encontrada através de outras provas. A verossimilhança a ser exigida pelo juiz, contudo, deve considerar: (a) o valor do bem jurídico ameaçado; (b) a dificuldade de o autor provar a sua alegação; (c) a credibilidade, de acordo com as regras de experiência, da alegação, e (d) a própria urgência descrita. Note-se, por outro lado, que a tutela antecipatória, no caso de obrigação de fazer ou de não fazer, pode ser deferida, segundo expressa disposição do artigo 461, mediante justificação prévia. Essa justificação prévia pode ser realizada em qualquer caso de tutela antecipatória, não constituindo privilégio da ação que tutela as obrigações de fazer e não fazer.

 

            2.4. A tutela antecipatória baseada em fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação pode ser deferida antes da ouvida do réu. A necessidade da ouvida do réu poderá comprometer, em alguns casos, a efetividade da tutela urgente. A tutela urgente poderá ser concedida, antes da ouvida do réu, quando o caso concreto a exigir. Alíás, a Corte Constitucional italiana já deixou claro que a tutela de urgência representa um componente essencial e ineliminável da tutela jurisdicional, nos limites em que é necessária para neutralizar um perigo de dano irreparável.(7) A tutela pode ser concedida após a ouvida do réu e, ainda, após encerrada a instrução. Neste último caso o juiz deve proferir a decisão     interlocutória e, logo após, a sentença. De nada adiantaria o deferimento da tutela na sentença, uma vez que o Código de Processo Civil não prevê o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação como fundamento para o juiz deixar de dar efeito suspensivo ao recurso de apelação.

 

            2.5. É possível a antecipação com base no inciso II do artigo 273 quando: (a) os fatos constitutivos do direito do autor estão provados e a exceção substancial indireta (fatos impeditivos, modificativos ou extintivos alegados pelo réu) é infunda; (b) não é contestada parcela do direito afirmado; (c) o recurso remexe em matéria de fato e carece, à evidência, de seriedade, ou quando o recurso trata de matéria de direito devidamente pacificada no tribunal.

            A posição de réu sempre foi privilegiada pelo procedimento ordinário. O réu, não raramente, vale-se da demora do procedimento ordinário em prejuízo do direito do autor. Embora alguns não queiram enxergar essa obviedade, é bom lembrar, apenas para ilustrar, que no direito europeu a tutela antecipatória é muito utilizada para eliminar as vantagens que são conferidas ao réu pelo processo de cognição plena e exauriente. Na Itália, por exemplo, há muito tempo é possível que o trabalhador peça, sem precisar aludir a receio de dano irreparável, não só o pagamento de soma não contestada,(8) como também o pagamento, com base em probabilidade, da soma contestada, que pode ser antecipada a titolo provvisorio. Proto Pisani, ao escrever sobre tal tutela, afirma que ela visa realizar o princípio da isonomia, constituindo medida de desincentivazione dell’interesse della parte economicamente più forte alla durata del processo.(9) Também na Itália, a Lei n. 990, de 24 de dezembro de 1969, admite a antecipação de até 4/5 do provável valor a ser indenizado, em favor da vítima de acidente automobilístico. A antecipação, aí, segundo a doutrina italiana, visa eliminar a ajuda que as seguradoras recebem da lunghezza dei processi.(10) Além disso, com a recente reforma do Código de     Processo Civil italiano, foram generalizadas a possibilidade da antecipação do pagamento de soma não contestada (artigo 186, bis) e a execução provisória da sentença. No direito francês é possível a antecipação, através da provision, quando l’obligation ne soit pas sérieusement contestable (a obrigação não é seriamente contestável; artigos 771 e 809 do Código de Processo Civil). A urgência não é requisito para a concessão da provision e Roger Perrot, o ilustre Professor da Universidade de Paris, alerta que o juiz não pode exigir uma incontestabilidade absoluta, sob pena de restringir abusivamente o domínio do référé-provision. É semelhante a possibilidade do emprego da antecipação, através do einstweilige Verfügungen, na Alemanha e na Áustria.

            A caracterização do abuso de direito de defesa deve ser feita a partir da evidência do direito do autor. Para a antecipação não basta que o comportamento do réu configure ação descrita no inciso IV ou no inciso VI do artigo 17 do Código de Processo Civil. Não é a indevida retenção dos autos, por exemplo, que autoriz'a a antecipação. A antecipação só é possível quando a defesa ou o recurso do réu deixam entrever a grande probabilidade de o autor resultar vitorioso e, conseqüentemente, a injusta espera para a realização do direito. Melhor explicando: a indevida retenção dos autos, se configura ilícito processual, pode abrir oportunidade para a penalização daquele que mal procede, mas jamais para a antecipação, que somente pode ter relação com a evidência do direito do autor e com a fragilidade da resistência do réu.

            Quando se diz que la durata del processo non deve andare a danno dell’attore che ha ragione, objetiva-se preservar o princípio da isonomia. Quando o direito é evidente, ou quando há abuso de direito de defesa, a ausência de previsão de tutela antecipatória obrigaria o Estado a faltar com o seu compromisso de prestar a adequada tutela jurisdicional. Tratar um direito evidente e um direito não-evidente da mesma forma, é tratar de forma igual situações desiguais. Portanto, nos casos de abuso de direito de defesa, o princípio da isonomia e a necessidade de efetividade do processo justificam, em uma determinada medida, um risco de prejuízo ao réu.

            A antecipação, exatamente porque o réu deixará de ter do seu lado a demora do processo, inibirá as defesas abusivas e favorecerá a conciliação, efeito benéfico que foi constatado na França por Roger Perrot. No caso de abuso de direito de recorrer, a antecipação, mais do que acelerar, em cada caso concreto, a realização do direito do autor, terá efeito pedagógico importante, desestimulando o recursos meramente protelatórios, que não só são muito comuns, como também muito custosos.

            Nós temos que abandonar o mito liberal do processo como mera garantia de formas, indiferente à realidade social no qual opera. O processualista não pode ser conivente com a prática forense que mostra, dia após dia, que o réu obtém vantagens imorais com aquilo que imagina ser o seu direito de defesa. A realidade social brasileira exige que seja realçado o valor da efetividade, já que muitos não podem esperar para receber as pequenas quantias a que têm direito, a não ser com um custo muito alto, que em vários casos pode significar até mesmo fome e miséria. Aqueles que tratam da ampla defesa como dogma e ainda assim falam em efetividade, devem parar para pensar que a ampla defesa, quando garante o réu, também pode retirar muita coisa do autor.

 

            2.6. O artigo 273 afirma, ainda, em seu parágrafo quarto, que "a tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada."    Assim, existem duas vias de controle da decisão que trata da tutela antecipatória: o recurso de agravo e a possibilidade de revogação ou modificação da tutela. Os pressupostos para a revogação-modificação da tutela, entretanto, nada têm a ver com a matéria que pode ser posta no agravo. As razões que permitem a revogação ou a modificação da tutela, quando não interposto o agravo, são as novas circunstâncias, vale dizer, são outras razões. Não é somente a alteração da situação de fato objeto da lide que permite a modificação ou mesmo a revogação da tutela, mas também o surgimento, derivado do desenvolvimento do contraditório, de uma outra evidência sobre a situação de fato. É o caso da produção de uma prova que possa alterar a convicção do juiz a respeito da situação de fato.

 

            2.7. Embora o parágrafo segundo do artigo 273 afirme que "não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento", o certo é que, em casos excepcionais, o juiz não poderá deixar de conceder a tutela ainda que presente o risco da irreversibilidade. Admitir que o juiz não pode antecipar a tutela, quando a antecipação é imprescindível para evitar um prejuízo irreversível ao direito do autor, é o mesmo que afirmar que o legislador obrigou o juiz a correr o risco de provocar um dano irreversível ao direito que justamente lhe parece mais provável. A tutela sumária funda-se no princípio da probabilidade. Não só a lógica, mas também o direito à adequada tutela jurisdicional, exigem a possibilidade de sacrifício, ainda que de forma irreversível, de um direito que pareça improvável em benefício de outro que pareça provável. Caso contrário, o direito que tem a maior probabilidade de ser definitivamente reconhecido poderá ser irreversivelmente lesado. O princípio da probabilidade, contudo, não pode desconsiderar a necessidade da ponderação do valor jurídico dos bens em confronto, pois embora o direito do autor deva ser provável, o valor jurídico dos bens em jogo é um elemento de grande importância para o juiz decidir se antecipa a tutela nos casos em que há risco de prejuízo irreversível ao réu.

 

            2.8. A atuação da tutela antecipatória não se subordina às regras do processo de execução. O juiz, através do provimento sumário, dá uma ordem visando à realização antecipada do direito. No mesmo provimento sumário, o juiz deve estabelecer os meios executórios que poderão ser utilizados para que a decisão seja observada. Justamente porque a atuação da tutela sumária não se subordina às regras próprias do processo de execução é que se atribui ao juiz um amplo poder destinado à determinação dos meios executórios. Assim, por exemplo, é possível a imposição de multa diária ou a determinação, também para o caso de inadimplemento, de requisição de força policial, busca e apreensão de coisa, imissão na posse, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obra e impedimento de atividade nociva. Não é possível que o réu queira se valer dos embargos do executado. O réu pode, através de simples petição, pedir a revogação ou a modificação da tutela. O que importa é que com a possibilidade imediata de modificação ou de revogação da tutela, está assegurado o princípio da igualdade no tratamento das partes.

            Cabe advertir, contudo, que no caso de antecipação do pagamento de soma em dinheiro, aplicam-se as regras do processo de execução como parâmetro operativo, porém prescindindo-se da necessidade da citação. Ordena-se o pagamento. Em vista da necessidade da observância do livro do processo de execução, fica o juiz investido do poder-dever de dar a máxima celeridade ao procedimento. Não é possível o uso dos embargos, mas, no caso de, v. g., penhora de bem impenhorável, o réu poderá pedir ao juiz, através de petição que suspende a execução, a correção da execução. Entretanto, se a tutela antecipatória provocar a constrição indevida de bem de terceiro, cabem os embargos de terceiro.

 

            3. Ao lado da tutela antecipatória, de grande importância para a efetividade do processo é o estudo das chamadas tutelas jurisdicionais diferenciadas. As tutelas diferenciadas são necessárias para assegurar o exercício do direito à adequada tutela jurisdicional. O processo, por ser a contrapartida que o Estado oferece aos cidadãos diante da proibição da autotutela, deve traduzir-se na disposição prévia dos meios de tutela jurisdicional (de procedimentos, provimentos e meios executórios) adequados às necessidades de tutela de cada uma das situações de direito substancial.

            Para que seja assegurada a tutela jurisdicional de uma determinada situação de vantagem, não é suficiente que seja previamente disposto um procedimento qualquer, mas é necessário que o titular da situação de vantagem violada, ou ameaçada de violação, tenha ao seu dispor um procedimento estruturado de modo a lhe poder fornecer uma tutela efetiva, e não meramente formal ou abstrata, do seu direito.(11) O procedimento, portanto, deve ser adequado às peculiaridades da pretensão de direito material, falando-se, então, em diferentes tipos de procedimento, tendo em vista as diferentes formas de tutela jurisdicional que se aprestam em função de lides estruturalmente diversas, isto é, que traduzem combinações de situações jurídicas subjetivas inconfundíveis, quanto à necessidade de tutela a que aspiram.(12)

            Uma das manifestações mais importantes de procedimento diferenciado visando à efetividade do processo consubstancia-se no procedimento monitório. O Anteprojeto de Modificação do Código de Processo Civil de 1985 – elaborado por Luís Antônio de Andrade, José Joaquim Calmon de Passos, Kazuo Watanabe, Joaquim Correia de Carvalho Junior e Sérgio Bermudes – já apresentava o procedimento monitório como alternativa para a morosidade do procedimento comum. A Comissão da Escola Nacional da Magistratura, sob a presidência do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, responsável pelas várias modificações há pouco tempo ocorridas, apresentou projeto – visando à introdução do procedimento monitório no Código de Processo Civil – que foi convertido na Lei n. 9.079, de 14 de julho de 1995, que acrescentou ao Livro IV, Título I, do Código de Processo Civil, o Capítulo XV, sob a rubrica Da ação monitória.

 

            3.1. O procedimento monitório tem por fim permitir a formação do título executivo sem as delongas do procedimento ordinário. Objetiva, em outras palavras, acelerar a realização do direito, livrando o credor da angustiante demora do procedimento ordinário.(13)

            De acordo com o artigo 1.102a. do Código de Processo Civil, o titular de prova escrita sem eficácia de título executivo, que pretender o pagamento de soma em dinheiro, ou a entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel, está autorizado a propor ação monitória. No procedimento monitório, estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deve deferir, sem a ouvida do réu, a expedição de mandado de pagamento ou de entrega da coisa, que se tornará definitivo em caso de não oposição ou de rejeição dos embargos.

            Trata-se, sem dúvida, de procedimento monitório do tipo documental,(14) exigindo-se para o cabimento da ação que o autor esteja munido de documento, público ou privado, que sustente o crédito e não constitua, como já foi dito, título executivo extrajudicial. Uma vez deferida a expedição do mandado e citado o réu, esse poderá: (a) atender à ordem, hipótese em que ficará isento do pagamento de custas e honorários advocatícios; (b) permanecer inerte, quando o provimento sumário adquirirá, desde logo, a qualidade de título executivo; ou (c) apresentar embargos, caso em que será instaurado um procedimento incidental de cognição exauriente.(15)

 

            3.2. No procedimento monitório é empregada a técnica da cognição exauriente secundum eventum defensionis, já que uma vez apresentados os embargos, que seguem as regras do procedimento ordinário, e onde o réu poderá alegar qualquer matéria, a cognição será exauriente. Trata-se da adoção de um critério racional, que responde à exigência de se evitar um desnecessário procedimento de cognição plena e exauriente quando a prova escrita demonstra, em alto grau de probabilidade, a existência do direito.(16)

            Os embargos são processados nos mesmos autos e dispensam a prévia segurança do juízo. Na hipótese de não apresentação de embargos ao mandado, o devedor, em eventual embargos à execução, somente poderá alegar as matérias previstas no artigo 741.(17) O procedimento monitório, ao supor que a ausência de iniciativa do réu confirma a existência do direito que já era aceito como provável, apenas reafirma a tão sentida necessidade de tratamento diferenciado aos direitos evidentes. Parte-se da premissa de que a prova da existência do direito e a inércia do devedor são suficientes para a formação do título executivo. É preciso ter sempre em mente que o título executivo judicial, formado pelo procedimento monitório, parte da existência de prova documental capaz de demonstrar a existência do direito. O legislador, quando criou o procedimento monitório, aceitou o risco que a defesa corre em nome da necessidade da tutela adequada dos direitos evidentes.

 

            3.3. É possível a antecipação da execução quando os embargos deixam entrever abuso de direito de defesa ou ainda quando presente fundado receio de dano irreparável.(18) Os embargos, que nada mais são do que meio de impugnação, poderiam ser simples contestação, não fosse a idéia de se inibir a inércia do réu, exigindo-se dele a propositura dos embargos para o desenvolvimento do contraditório. Entretanto, também é possível que o réu queira se valer dos embargos apenas para protelar a realização do direito afirmado pelo autor. O intuito protelatório, no procedimento monitório, obviamente não pode deixar de ser considerado, principalmente porque este procedimento visa tratar de forma diferenciada um direito evidente.(19) Por outro lado, como também pode acontecer no procedimento ordinário, é possível que o autor precise desde logo do bem perseguido para não ter direito prejudicado de forma irreparável.(20)

 

            4. O novo artigo 461 do Código de Processo Civil, tratando da tutela específica das obrigações de fazer e de não fazer, também é muito importante para a efetiva tutela dos direitos, notadamente em razão da não patrimonialidade da grande maioria dos chamados novos direitos e das novas peculiaridades da economia contemporânea, que deixou de ser de troca de coisas para passar a ser fundamentalmente de prestação de fatos.(21)

 

            4.1. É compreensível que essa nova realidade tenha conduzido à crise do processo de execução e, ainda, apontado para a insuficiência da sentença condenatória. No direito continental europeu, quando se discute a execução das obrigações não-patrimoniais, nota-se que a doutrina tem uma grande dificuldade de imaginar medidas processuais realmente idôneas para a obtenção da realização do direito e percebe-se que também as medidas de coerção indireta – onde existem – resultam geralmente em um paliativo que não leva a ordem do juiz a produzir o efeito prático desejado.(22)

            Há quem tente introduzir no direito italiano os instrumentos próprios do sistema anglo-americano, afirmando que a sentença condenatória deve conter uma ordem, que, em caso de descumprimento, sujeite o inadimplente à pena de prisão.(23) Aliás, um dos pontos que mais tem despertado debates na doutrina italiana é o da tutela urgente que determina a reintegração do trabalhador no emprego. Mariangela Zumpano chega a lembrar que parte da doutrina não admite esta tutela antecipatória com base no argumento de que o provimento de urgência encontraria um limite insuperável na infungibilidade da obrigação deduzida.(24) Note-se, porém, que de nada adiantaria se pensar em uma transmudação da sentença condenatória, se não fosse aceita, como premissa, a possibilidade da realização coativa das obrigações infungíveis. É que para nada serve a sentença mandamental se o direito não pode ser realizado coativamente. A sentença seria meramente declaratória! Não podemos, entretanto, continuar sacralizando o princípio da autonomia da vontade, se o preço for a falta de resposta aos direitos mais importantes do cidadão.

 

            4.2. O direito anglo-americano, através da equity,(25) tem criado instrumentos adequados às reais necessidades de tutela. A injunction, ao impor a specific performance da obrigação de fazer ou de não fazer, bloqueia a eventualidade substitutiva do ressarcimento do dano derivado do inadimplemento. Nesse caso, ou se recorre a formas de execução específica por sub-rogação, quando for possível, e quando a Corte o julga oportuno, ou a execução é deixada ao obrigado, que, em caso de inadimplemento, é punível a título de contempt of Court.(26)

            A sentença mandamental, é preciso que se perceba, guarda relação com o direito anglo-americano, onde o contempt power não pode ser compreendido apenas através do ângulo técnico-jurídico, já que foi nitidamente influenciado pela ética protestante, com o seu inegável acento sobre a responsabilidade pessoal.(27) Além disso, convém advertir que o juiz do direito continental europeu não dá ordens não apenas porque o legislador deu preferência ao sistema fundado na sentença condenatória e no processo de execução, mas, fundamentalmente, porque a sua figura não tem a mesma relevância que a do seu colega do direito anglo-americano.(28) Assim, se determinadas situações, particularmente a das obrigações             infungíveis, revelam a inefetividade da sentença condenatória, não é possível que a desfiguremos, mantendo o seu velho nome, sem discutir tudo o que está por detrás da verdadeira sentença condenatória e da injunction.

 

            4.3. A sentença condenatória, caso não observada, não permite a imposição de medidas coercitivas. É necessário lembrar que a doutrina italiana tradicional afirma que o devedor, após a sentença condenatória, continua apenas civilmente obrigado. Para a doutrina que formulou o conceito de sentença condenatória, a qualidade da relação obrigacional entre as partes não se altera após a coisa julgada material, ou, em outros termos, o devedor que não satisfaz o julgado não comete desobediência alguma suscetível de imposição de multa ou de outra medida coercitiva.(29) A sentença condenatória não pode abrir oportunidade à imposição de multa, porque o devedor que não observa a sentença condenatória não comete insubordinação à autoridade judicial.

 

                4.4. O artigo 461 abre oportunidade para o provimento mandamental, único capaz de permitir a tutela específica em determinadas situações concretas. A multa diária, prevista no parágrafo quarto do artigo 461, pode ser comparada ao contempt,(30) constituindo poderoso meio coercitivo. A multa poderá ser aplicada independente de pedido do autor e em montante suficiente para pressionar o réu ao adimplemento.

                O artigo 461 objetiva permitir ao autor obter a tutela específica ou o resultado equivalente ao do adimplemento. É por isso que o artigo afirma que a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, além da multa, determinar as medidas necessárias – de ofício ou a requerimento –, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial (art. 461, par. 5, CPC).

                Não é errado imaginar que, em alguns casos, somente a prisão poderá impedir que a tutela seja frustrada. A prisão, como forma de coação indireta, pode ser utilizada quando não há outro meio para a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente. Não se trata, por óbvio, de sanção penal, mas de privação da liberdade tendente a pressionar o obrigado ao adimplemento. Ora, se o Estado está obrigado a prestar a tutela jurisdicional adequada a todos os casos conflitivos concretos, está igualmente obrigado a usar os meios necessários para que as suas ordens (o seu poder) não fiquem à mercê do obrigado. Não se diga que esta prisão ofende direitos fundamentais da pessoa humana, pois se tal fosse verdade não se compreenderia a razão para a admissão do emprego deste instrumento nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha.(31) Na verdade, a concepção de processo, como instrumento posto à disposição das partes, é que encobre a evidência de que o Estado não pode ser indiferente à efetividade da tutela jurisdicional e à observância do ordenamento jurídico. Se o processo é, de fato, instrumento para a realização do poder estatal, não há como negar a aplicação da prisão quando está em jogo a efetividade da tutela jurisdicional e o cumprimento do ordenamento jurídico. É por isso, aliás, que a Constituição não veda este tipo de prisão, mas apenas a prisão por dívida.(32)

 

Notas:

1) V., sobre a tutela antecipatória na reforma do Código de Processo Civil, Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela na reforma do processo civil, São Paulo, Ed. Malheiros, 1995.

2) Salvatore Satta, "Provvedimenti d’urgenza e urgenza di provvedimenti", in Soliloqui e colloqui di un giurista, Padova, Cedam, 1968, pp. 392-395.

3) Giovanni Verde, "Considerazioni sul procedimento d’urgenza", in I processi speciali; studi offerti a Virgilio Andrioli dai suoi allievi, Napoli, Jovene, 1979, p. 420.

4) G. Chiovenda, Instituições de direito processual civil, São Paulo, Saraiva, 1965, v. 1, p. 235.

5) Piero Calamandrei, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, Padova, Cedam, 1936.

6) Também de prova realizada em processo em que litiga ou litigou com o réu.

7) Cf. Andrea Proto Pisani, Intervento, Atti del XV Convegno Nazionale, Bari, 4-5 ottobre 1985, La tutela d’urgenza, Rimini, Maggioli Editore, 1985, p. 118.

8) V. Monica Zucchi, "L’ordinanza di pagamento delle somme non contestate", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1991, pp. 1.025 e ss.; Filippo Collia, "L’ordinanza per il pagamento di somme non contestate nel processo del lavoro", Rivista di diritto processuale, 1994, pp. 538 e ss.

9) Commentario breve al Codice di Procedura Civile (Carpi, Colesanti, Taruffo), Padova, Cedam, 1988, p. 639.

10) Sergio Chiarloni, Introduzione allo studio del diritto processuale civile, Torino, Giappichelli, 1975, p. 65 e ss.

11) Andrea Proto Pisani, "Breve premessa a un corso sulla giustizia civile", in Appunti sulla giustizia civile, Bari, Cacucci, 1982, p. 11.

12) Alcides Munhoz da Cunha, A lide cautelar no processo civil, Curitiba, Ed. Juruá, 1992, p. 18.

13) V. Edoardo Garbagnati, Il procedimento d’ingiunzione, Milano, Giuffrè, 1991, p. 20.

14) V., sobre a distinção entre procedimento monitório puro e procedimento monitório documental, Antonio Maria Lorca Navarrete, El procedimiento monitorio civil, San Sebastián, Instituto Vasco de Derecho Procesal, 1988.

15) V. José Rogério Cruz e Tucci, Ação Monitória, São Paulo, Ed. RT, 1995; Manoel Antonio Teixeira Filho, "Ação monitória no processo do trabalho.", Suplemento trabalhista (LTr), 110/95, pp. 727/736; Ronaldo Brêtas C. Dias, "Procedimento monitório – Implantação no Código de Processo Civil Brasileiro – Breves comentários à Lei n. 9.079/95", Boletim Técnico (OAB/MG), v. 2, n. 3, pp. 173/183.

16) Luiz Guilherme Marinoni, Efetividade do processo e tutela de urgência, Porto Alegre, Fabris, 1994, p. 25.

17) Em sentido contrário, José Rogério Cruz e Tucci, Ação monitória, cit., p. 68-69.

18) V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela na reforma do processo civil, cit., item 4.11.

19) V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela na reforma do processo civil, cit., item 4.11.4.

20) V. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela na reforma do processo civil, cit., itens 4.11.1, 4.11.2, 4.11.3 e 4.11.5.

21) "Pense-se na progressiva expansão das prestações de facto, com o hodierno crescimento de prestações de serviços ligado à revolução tecnológica, que, é sabido, engendra uma acentuada deslocação dos sectores primário e secundário para o sector terciário na actividade das sociedades mais evoluídas, em que serviços, informações, know-how e sofisticadas tecnologias de ponta se expandem. Criam-se e multiplicam-se, sobretudo nos países de técnica mais avançada, empresas de serviços especializados, apostadas em fornecer as mais variadas espécies de facto, muitas das quais, assim, deixam de ser puras relações de obsequiosidade para passarem a ser objecto do comércio jurídico" (João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, cit., p. 24).

22) V. Federico Carpi, "Note in tema di techniche di attuazione dei diritti", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1988, p. 111.

23) Andrea Proto Pisani, "Appunti sulla tutela di condanna", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1978, p. 1.170.

24) Mariangela Zumpano, "Tutela d’urgenza e rapporto di lavoro", Rivista di diritto processuale, 1989, p. 836.

25) "A razão essencial da equity está na oportunidade de fornecer remedies a situações não tuteláveis at law, à medida que estas situações emergem como economicamente relevantes, necessitando, pois, de tutela na forma jurisdicional. A equity nasce e se expande com base na necessidade de dar tutela aos novos direitos que emergem nos vários momentos históricos, constituindo assim um potente fator de adequação do sistema jurisdicional às necessidades reais de tutela". (Michele Taruffo, "L’attuazione esecutiva dei diritti: profili comparatistici", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1988, pp. 145-146).

26) Cf. Michele Taruffo, "L’attuazione esecutiva dei diritti: profili comparatistici", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1988, p. 151.

27) V. Sergio Chiarloni, Misure coercitive e tutela dei diritti, Milano, Giuffrè, 1980, p. 239.

28) "El resultado es que aunque existe una similitud superficial de funciones entre el juez del derecho civil y el juez del derecho común anglosajón, hay disparidades de importancia en sus papeles. En parte el juez en el sistema de derecho civil contemporáneo hereda una posición y realiza una serie de funciones determinadas por la tradición que se remonta hasta el iudex romano. Esta tradición en que el juez nunca ha sido considerado como parte de una actividad creadora se vio influida por la ideología de la revolución europea y por las consecuencias lógicas de la doctrina nacionalista de una estricta separación de poderes. El juez en el sistema de derecho civil desempeña así un papel mucho más modesto que el de su colega en el derecho común anglosajón y el sistema de selección y de inamovilidad del juez civilista es coherente con este muy diferente estado de la profesión judicial" (John Henry Merryman, La tradición jurídica romano-canónica, México, Fondo de Cultura Económica, 1968, pp. 71-72).

29) Essa é, por exemplo, a posição de Luigi Montesano, Le tutele giurisdizionali dei diritti, Bari, 1985, p. 149.

30) V. Jorge Walter Peyrano, Medida cautelar innovativa, Buenos Aires, Depalma, 1975, p. 117; Aldo Frignani, "Il contempt of Court quale sanzione per l’inesecuzione dell’injunction", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1972, p. 331 e ss.

31) V. Michele Taruffo, "L’attuazione esecutiva dei diritti: profili comparatistici", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1988, p. 152; Aldo Frignani, L’injunction nella common law e l’inibitoria nel diritto italiano, cit., p. 592; João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, cit., pp. 388-389.

32) V. Donaldo Armelin, "A tutela jurisdicional cautelar", Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, v. 23, pp. 136-137; Ovídio Baptista da Silva, Curso de processo civil, v. 2, cit., p. 256; Andrea Proto Pisani, "Appunti sulla tutela di condanna", Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1978, pp. 1.104-1.210; Aldo Frignani, L’injunction nella common law e l’inibitoria nel diritto italiano, cit, pp. 592-599; João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, cit., pp. 388-389.

 

 

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