PRIMEIRA PERGUNTA :[1]

 

É possível uma pessoa ser injusta consigo mesma ?

 

 

Tal questionamento é desenvolvido por Aristóteles quando ele trata da teoria da justiça. Todo o Livro V da Ética a Nicômacos é consagrado à Justiça que ele define como a espécie de disposição que torna os homens capazes de realizar ações justas e de querer as coisas justas.

Ele vai distinguir diferentes tipos de justiça teóricos.

Para ele a justiça é a fonte de todas as demais virtudes porque uma sociedade justa é uma sociedade mais qualificada que uma sociedade injusta porque, na primeira, a pessoa humana pode realizar e atingir de forma mais completa a felicidade.

É uma qualidade que se refere à realização mais completa de um ser que é a sociedade. A justiça , portanto, é esta qualidade social da sociedade que faz com ela, sociedade, realize mais plenamente a sua natureza , os seus objetivos, que é realizar o bem comum .

Ele vai afirmar que , na verdade, existem dois tipos de justiça : uma, é a justiça que se refere à retribuição aritmética , que é a justiça punitiva ou comutativa e, outra, que se refere à distribuição de bens , que é a justiça distributiva.

A justiça na concepção de Aristóteles é algo social e somente , impropriamente, podemos nos referir a uma pessoa justa.

Ele fala que o justo é conforme a lei ( - lei moral – ) e, o injusto é ilegal e iníquo. A justiça legal é uma justiça que se relaciona com a organização política, não é com o homem, com uma pessoa humana, mas com a organização política, com o Estado.

Ao introduzir a idéia de justiça distributiva, ele vai dizer que a justiça é uma igualdade proporcional, distributiva que, geralmente, aparece com desigualdade. A justiça distributiva é , assim, um instrumento , é uma virtude que vai dizer como é que aquelas desigualdades encontradas na sociedade poderão ser superadas, poderão ser corrigidas. Assim, ele trata da questão da justiça distributiva como mediania proporcional, isto é , a Justiça para Aristóteles vai pesar em cada caso as circunstâncias que vão fazer com que o justo num determinado caso seja diferenciado do justo no outro caso, e, então, vai ser aplicada , vai realizar-se de forma diferenciada para cada caso, daí ele introduz a noção do justo meio : “ se o injusto é o não igual, o justo é o igual, e, como o igual é médio, o justo será um justo meio ”.

Tanto a justiça comutativa quanto a distributiva ela aparece para Aristóteles como expressão da igualdade . Desta forma, a injustiça é antes de tudo a materialização de uma desigualdade, o rompimento de uma igualdade.

Diz Aristóteles que a aplicação da justiça vai dar-se através de lei, normas e esta igualdade vai ser aplicada em cada caso concreto, introduzindo, então, a idéia de eqüidade que é uma forma superior de justiça , a busca da justiça em cada caso , porque ela vai buscar o justo meio, vai buscar a proporção adequada para procurar restabelecer a igualdade em função de cada caso em particular.

Ele vai colocar algumas dificuldades em relação à justiça e uma das perguntas que faz é se uma pessoa pode ser injusta consigo mesmo que ele chama de último obstáculo em relação à justiça.

A justiça é a observância do meio termo , enquanto que a injustiça se relaciona com os extremos, assim, não se deve dar demais a outra pessoa e pouco a si mesma , o que é nocivo , e , sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idêntica em relação a duas outras pessoas.

Para ele ninguém faz mal a si mesmo e, por esta razão uma pessoa não pode ser injusta em relação a si mesma , porque a justiça e a injustiça estão consubstanciadas na lei. Por outro lado, uma pessoa que dá o que é seu, não é tratada injustamente, pois embora dar dependa de sua vontade, ser tratado injustamente não depende, pois tem de haver outra pessoa para tratar a outra injustamente. Assim, não se é tratado injustamente por vontade própria.

Quando uma pessoa comete o suicídio ela age injustamente não só contra si mesma , mas contra a sociedade e tem-se que perceber o caráter voluntário do ato,  porque ninguém sofre uma injustiça voluntariamente e porque o justo e o injusto sempre envolvem mais de uma pessoa.

Ele coloca que existe uma espécie de justiça no homem entre algumas de suas partes , ou seja, entre a parte racional e a parte irracional da alma , e é com vistas a estas partes que se pensa que uma pessoa pode agir injustamente em relação a si mesma.

 

BIBLIOGRAFIA

 

1 – Ética a Nicômacos – Aristóteles – Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury – 3ª edição – Editora UnB.


 

 

SEGUNDA PERGUNTA:

 

Situar historicamente o pensamento de Kant – importância dele para o Estado Constitucional

 

A filosofia política de Kant, é muito difícil de ser situada . Para uns , ele seria ardente defensor da Revolução Francesa , principalmente para aqueles que traduziram  seu Projeto de Paz Perpétua , porém sua crítica acerca do direito de resistência incita a duvidar disso. Para outros, sua filosofia do direito se inspira no muito democrático Contrato Social de Rousseau.  Para outros, uma fundação do sistema jurídico  elaborado por Pufendorf que ninguém contesta tenha exercido excepcional influência sobre a história das teorias do Estado ao publicar o “ Direito da natureza e das pessoas que resumia toda a ciência política da época, lido por Rousseau.

O Estado Absoluto nasce da dissolução da sociedade medieval que era eminentemente pluralista. Originava-se de diferentes fontes de produção jurídica e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos. No que se refere às fontes podem ser citadas o costume ( direito consuetudinário ), a vontade da classe política que detém o poder supremo ( direito legislativo ) , a tradição doutrinária ( direito científico ), a atividade das cortes de justiça ( direito jurisprudencial ).

A melhor e mais coerente expressão do Estado Absoluto encontra-se no pensamento político de Thomas Hobbes, cujas teorias políticas adquirem um valor de paradigma.

No movimento do absolutismo estatal é necessário levar-se em conta também o maquiavelismo, que no seu significado mais próprio , é um aspecto da luta para a formação do Estado Absoluto,  quer dizer, do Estado sem limites.

O maquiavelismo assim entendido chega a fazer parte da teoria da razão do Estado, que acompanhou a consolidação do Estado Absoluto.

O problema fundamental do Estado Constitucional Moderno , que se desenvolve como antítese do Estado Absoluto é o problema dos limites do poder estatal.

O Estado Moderno Liberal e Democrático surgiu da reação contra o Estado Absoluto. Este nascimento foi acompanhado por teorias políticas cujo propósito fundamental foi o de encontrar um remédio contra o absolutismo do poder do príncipe. São elas : teoria dos direitos naturais ou jusnaturalismo, teorias da separação dos poderes e teorias da soberania popular ou democracia.

Esses tres grupos de teorias podem ser considerados como as etapas principais através das quais se desenvolve o pensamento político dos séculos XVII e XVIII até Kant.

Formas diversas assumiram a polêmica contra o Estado Absoluto, que serão encontradas no pensamento de Kant que , sob certos aspectos, pode ser considerado como uma síntese das doutrinas iluministas do Estado. No pensamento de Kant são encontradas tanto a afirmação dos direitos naturais como a teoria da separação dos poderes ou da vontade geral , como fundamento do poder de fazer leis.

Os momentos mais interessantes da luta em prol do Estado Moderno são tres: 1) o período das guerras religiosas , especialmente na França , no final do XVI ; 2) a guerra civil e a assim chamada revolução pacífica na Inglaterra ; 3) a Revolução Francesa. Deste último período, dois pensadores políticos exerceram maior influência sobre a Revolução Francesa – Montesquieu e Rousseau , cujas teorias foram retomadas e reinterpretadas por Kant. Aliás, Kant considerava Rousseau o relógio moral da humanidade. Ele vai partir da idéia de Rousseau para a regulação da liberdade. E Rousseau  dizia que era necessário obrigar o homem a ser livre, isto é , que a vontade geral , que não é a soma das vontades , mas uma vontade que surge como resultado , como uma vontade do todo social, e não dos nossos interesses particulares ; essa vontade geral é um instrumento que irá obrigar as pessoas a serem livres.

Kant quanto Locke entendia que na passagem do estado da natureza para o estado civil , ficaria conservado o que de melhor existe no estado de natureza , e apresenta o estado civil não como uma substituição do estado de natureza, mas como a sua mais plena e eficaz conservação.

Por outro lado são encontrados no pensamento de Kant, ainda que nem sempre muito claros, os dois conceitos de liberdade : a chamada liberdade negativa ( Montesquieu ) e a liberdade como autonomia ( Rousseau ). Isto pode ser considerado como uma característica de seu pensamento que concilia num certo sentido a tradição do pensamento liberal, baseada no primeiro conceito, com a tradição do pensamento democrático, baseada no segundo.

Kant diz que o homem, a pessoa humana é o único ser do universo que vai pautar a sua conduta em função da lei da liberdade e da lei da necessidade. Ele vai descobrir que a lei da liberdade, isto é, este comportamento livre do ser humano , este exercício da autonomia das pessoas, vai ser regulado através de dois tipos de normas : o direito e a moral. Ele aponta que a mais importante das liberdades é a liberdade moral. Vai definir no direito um espaço útil de liberdade que ele chama de liberdade jurídica. Então, a autonomia do ser humano é regulada por dois sistemas de normas : a liberdade moral e a liberdade jurídica, uma completando a outra.

Assim, neste contexto , o direito vai ser um direito que terá sua origem , suas raízes na autonomia da pessoa humana. Para que isso ocorra é necessário, entretanto, que exista um sistema político constitucional que assegure a situação das liberdades dos indivíduos. Daí , Kant ter-se referido ao Estado Constitucional que é um sistema jurídico que reflete o exercício das autonomias individuais, através da aplicação da lei. Esta a razão pela qual no Estado Constitucional de direito, mesmo a lei injusta deve ser obedecida enquanto vigir até que seja modificada, respeitando o processo de elaboração.           

Kant dizia que  todos os seus livros eram voltados para responder a quatro questões :   Primeira : Quais os limites do conhecimento humano, até onde pode atingir?

Escreveu o livro Crítica da Razão Pura.

Segunda : Como devo agir? ( onde está o Direito e a Ética ) . E para responder a essa pergunta ele escreveu quatro livros :

Primeiro :  Crítica da Razão Prática.

Segundo : Crítica da faculdade de julgar.

Terceiro : Fundamentação  da Metafísica dos Costumes.

Quarto :    Metafísica do Justo Juiz , que se subdivide em dois livros : a) A Doutrina das virtudes ( Ética)

            b) A Doutrina do Direito.

Terceira : O que devo esperar ? ( trata da questão religiosa ). É a filosofia da religião dele.

Quarta  : O que é o homem ? ( -  é a antropologia filosófica - ).

No livro Crítica da Razão Pura que foi o primeiro livro dele ele estuda o conhecimento humano, em que busca saber o que é a razão do homem independente de qualquer contato com o real, o que ele pode em si saber. E ele dizia, como podia dizer, que a verdade não existe, que nós temos aproximações daquilo que a inteligência humana considera como sendo verdade. Era uma reflexão abstrata.           

No livro Crítica da Razão Prática, era a razão aplicada em fazer as coisas.

No livro Crítica da Faculdade de Julgar, abrangia todos os setores da vida. Ele vai mostrar quais são os processos mentais e racionais do homem ao escolher, inclusive julgar.

No livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes ele vai buscar os fundamentos para além dos costumes, isto é , para além de como os valores são organizados em cada sociedade. Ele quer ver uma fundamentação que sirva a todas as formas de organização dos costumes. Ele nos diz que a moral se organiza em função de grupos sociais e a ética nos vai dar os princípios comuns a todas as moralidades.

A Justiça ela vai organizar-se de formas diferentes quanto aos costumes, mas a natureza dela,  Kant diz que existe uma fundamentação comum a todas as formas particulares de organização. Neste ponto, ele vai introduzir a idéia do que seja o imperativo categórico, formulado em duas dimensões  : a primeira, “age sempre de acordo com um princípio tal que possas querer ao mesmo tempo que se converta numa lei universal ”; a segunda, “ trate seu próximo como ele tendo uma finalidade em si mesmo e não como objeto ou instrumento de sua vontade pessoal ”.

Ele tem mais dois livros : Paz Perpétua -  que é um clássico do pensamento jurídico puro. A idéia da história numa visão cosmopolita – onde ele mostra que existe uma convergência na História da Humanidade e também o tipo de comportamento que repercute na ordem internacional.

Kant , precisamente, por esse tipo de preocupação central dele com a questão do agir humano, com a questão do Estado e com a questão do Direito dentro do Estado, ele é considerado como o pai ou filósofo do  constitucionalismo moderno.

Kant foi o primeiro a sistematizar as idéias básicas que vieram a ser consagradas no constitucionalismo moderno, a partir do final do século XVIII e início do século XIX. Ele é considerado o filósofo da autonomia moral , porque considera a liberdade moral de fato , não como falta de leis , mas como obediência à lei fundamental da própria razão e, portanto, como autonomia.

Sintomaticamente, o Kant com essas preocupações de que nas relações sociais existe uma dimensão ética, durante cerca de 200 anos, todo esse pensamento político do Kant foi ignorado, principalmente, aqui no Brasil. Daí, a nossa fortíssima visão da ordem jurídica como sendo algo estritamente positiva , que nada tem a ver com as relações políticas e dentro dessas relações políticas , com as questões éticas.

Kant , na verdade, é o núcleo dentro do qual vão se desenvolver toda a crítica da ordem jurídica, por ter sido ele, inclusive, um dos fundadores dessa ordem jurídica funcional como hoje todos entendem.

Kant também já afirmava que o direito autoral é o poder que um criador tem de impedir que alguém torna pública a sua criação intelectual, sem sua prévia autorização.

 

BIBLIOGRAFIA :

 

1- Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant – Norberto Bobbio  - Tradução de Alfredo Fait – Revisão Técnica de Estevão Rezende Martins - 4ª edição – Editora UnB.


 

[1]  Norma Chrissanto Dias – Mestrado da Universidade Gama Filho

 

 

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