AS MODERNAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO[1]

O princípio do devido processo legal

 

A Constituição de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a prever expressamente o princípio do devido processo legal, no inciso LIV do art. 5º, ao assegurar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Com efeito, o princípio do devido processo legal ou due process of law, é oriundo do Direito inglês, mais especificamente do art.39 da Magna Carta do rei João Sem-Terra em 1215.  Contudo, apesar de ter sido originária do direito anglo-saxão, a garantia do devido processo legal atingiu seu ápice com a sua inserção na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, através da emenda n.5 de 1789, que garantiu à vinculação do Poder Legislativo as suas regras, pois no direito anglo-saxão notável era a supremacia do Parlamento[2]

A partir do princípio do devido processo legal, passou-se a ter por reconhecido constitucionalmente o direito a um processo regido por diversas garantias processuais, como a de acesso pleno à Justiça;  de jurisdição pré-constituída; de tratamento igualitário; da plenitude do exercício do contraditório e seus desdobramentos lógicos; da motivação dos atos jurídicos-processuais praticados, bem como da sua publicização e da prestação jurisdicional em tempo mais do que razoável. 

O devido processo legal está intimamente ligado com o princípio do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, e com eles mantém relação de mútua dependência, mas com estes não se confunde; são, pois, princípios distintos. Podemos dizer que só há devido processo legal se forem respeitadas as garantias representadas pelos princípios do contraditório, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, da publicidade, do juiz natural, da assistência judiciária gratuita[3]. 

Nesse diapasão, é o princípio do devido processo legal o princípio informativo de todos os demais princípios que informam o processo e o procedimento.

Podemos afirmar que o princípio do devido processo legal é, como bem coloca Oreste Nestor de Souza Lastro :

“a obediência aos mandamentos legais relativos ao procedimento, quais sejam, os princípios do acesso à justiça, do direito de ação, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa, da motivação da sentença, entre outros[4].”

Destarte, o princípio do devido processo legal visa também a garantir o juiz competente, além dos princípios fundamentais e o respeito às formas legais para atingir a justiça[5].

Comungamos com o pensamento de Ada Pellegrini Grinover, in verbis:

“Garantia das partes e do próprio processo: eis o enfoque completo e harmônico do conteúdo da cláusula do devido processo legal, que não se limite ao perfil subjetivo da ação e da defesa com direitos, mas que acentue, também e especialmente, seu perfil objetivo.  Garantias, não apenas das partes, mas sobretudo de jurisdição: porque se, de um lado, é interesse dos litigantes a efetiva e plena possibilidade de sustentarem suas razões, de produzirem suas provas, de influírem concretamente sobre a formação do convencimento do juiz, do outro lado, essa efetiva e plena possibilidade constitui a própria garantia da regularidade do processo, da imparcialidade do juiz, da justiça das decisões.[6]

Em síntese, a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade em todas as etapas do processo judicial, de sorte que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento em que este se materializa, estejam contemplados todas as formalidades e requisitos exigidos pelo ordenamento legal. 

Assim, podemos definir o devido processo legal como garantia constitucionalmente prevista que assegura tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário, como o desenvolvimento processual sem dilações indevidas, de forma que o cidadão obtenha resposta tão rápida quanto possível, em cada fase do processo. 

Contudo, as garantias constitucionais do devido processo legal não se apresentam de forma incondicional ou ilimitada, pois devem ser submetidas a um certo regime temporal. A limitação temporal torna-se necessária para garantir a certeza das relações jurídicas e para assegurar um regular desenvolvimento do processo, de sorte que, em última análise, reforça as garantias constitucionais[7].

O direito ao processo tal qual outro direito fundamental deve ser regulado de modo a assegurar a efetividade, e esta efetividade pode resultar numa excessiva brevidade ou numa excessiva duração do processo, dependendo de como sejam disciplinados os prazos processuais[8].

Podemos concluir, portanto, que também em nosso País, o direito ao processo sem dilações indevidas é garantido pelo princípio do devido processo legal.

 

O princípio do contraditório

 

O princípio do contraditório é previsto na Constituição de 1988, em seu inciso LV, juntamente com o princípio da ampla defesa; ambos são aplicáveis aos processos judiciais e administrativos, excetuando-se assim os inquéritos policiais e inquéritos civis, consoante se depreende da leitura dos art.8º, §§ 1º e 9º LACP, e art.90 do CDC, que são procedimentos inquisitórios preparatórios, que visam a auxiliar o Parquet a promover as ações que se fizerem necessárias.

Registre-se que, apesar de difícil diferenciação, o princípio da ampla defesa não se confunde com o contraditório, pois este princípio assegura a parte, além do direito de tomar conhecimento de todos os termos do processo, o direito de alegar e produzir as provas de suas alegações, desde que não sejam vedadas por lei.

Estes princípios surgem em virtude da necessidade que se dê ciência às partes, seja através da citação, da intimação e da notificação dos atos praticados no processo, para que estas possam exercer seu direito de defesa.

O objetivo central da garantia do contraditório não deve ser interpretado de forma negativa, ou seja, somente como forma de oposição aos interesses da outra parte, mas sim e, sobretudo, como forma de poder participar efetivamente na demanda[9].  Com efeito, os elementos formadores do contraditório são a conjugação de informações e a eventual reação das partes[10].

“O plano da concreta aplicabilidade da garantia do contraditório tem íntima relação com o princípio da igualdade, em sua dimensão dinâmica (princípio igualizador).  Assim, o contraditório opera com vistas à eliminação (ou pelo menos diminuição) das desigualdades, jurídicas ou de fato, entre os sujeitos do processo.” [11]

De fato, o princípio do contraditório é inerente ao processo democrático, sendo uma decorrência lógica do princípio da igualdade processual, garantindo um amplo debate, dando-se oportunidade à parte não só para falar sobre as alegações de outro litigante, como também, para fazer a contraprova.  Desta forma, é imprescindível abrir-se a cada uma das partes a possibilidade de participar do juízo de fato, na produção das provas, tendo em vista a formação do convencimento do magistrado.

Para uma maior plenitude e efetividade deste princípio, José Carlos Barbosa Moreira[12] sugere que haja maior proximidade do juiz com as partes e, em alguns casos, como no direito de família, haja entrevista isolada do juiz com a testemunha[13]. 

Este princípio informa todo o processo; todavia, no processo penal ele é efetivo, daí se explica a possibilidade de no caso do juiz considerar o réu indefeso, determinar que lhe seja nomeado defensor, consoante o art.497, v do CPP, o que não acontece no Processo Civil, em que este princípio é menos amplo, bastando somente que o réu seja citado; assim, mesmo em caso de revelia, o princípio foi atendido. 

A extrema morosidade da justiça, responsável pelas inúmeras críticas e reformas legislativas, deu ensejo sobretudo a uma intensa busca pela efetividade processual; por conseguinte,  tem-se adiado o contraditório, nos casos em que o juiz determina certas providências, sem ouvir a parte contrária, como ocorre com o deferimento de medidas liminares em ações possessórias, mandado de segurança, ação popular, ação coletiva, ação civil pública e antecipação da tutela.

“Quando a urgência não se revele com todas as galas da evidência, quando o direito alegado não for suficientemente evidente e débil se apresente a prova trazida pelo requerente da antecipação e principalmente não houver perigo a prevenir, a postergação do contraditório não estará autorizada, ilação que naturalmente não desautoriza o deferimento da antecipação  em momento posterior, se surgirem elementos novos para tantos.”[14]

Evidentemente, estes provimentos judiciais são espécies de tutela de urgência, que devem ser usadas com moderação e, com mais moderação ainda, devem ser deferidas pelos magistrados, a fim de se evitar que medidas excepcionais se tornem a regra, assegurando-se, mormente uma maior eficácia dos direitos. 

A atividade cognitiva voltada para o exame das questões que podem ser conhecidas no bojo de um determinado processo permite sua visualização em dois planos distintos: horizontal e vertical.

No plano horizontal, o conhecer trafega pela extensão ou amplitude das questões processuais, das condições para o exercício regular do direito de ação processual e das questões relativas ao meritum causae

A cognição vertical, por sua vez, e segundo a profundidade do exame, poderá ser exauriente ( completa no exame das questões em sua profundidade ) ou sumária (incompleta no exame das questões em sua profundidade). 

A cognição sumária é sempre fundada em um juízo de aparência; não há, portanto, uma limitação para a produção das provas necessárias à comprovação do direito, porquanto não se confunde com a cognição parcial, que reserva determinadas questões, pertencentes à situação litigiosa, para outros procedimentos[15].

É certo que as tutelas de urgência são formas de se evitar prejuízos irreparáveis, causados pela demora da prestação jurisdicional, não se podendo olvidar da sua importância e, como é sabido, não há nesses casos lesão ao princípio do contraditório, pois as liminares possuem natureza sumária e provisória.  Destarte, pode o réu apresentar defesa e recurso contra o seu deferimento, o que não deixa de ser uma manifestação posterior do contraditório[16].

Assim, transcrevemos as preciosas lições de Luiz Guilherme Marinoni, in verbis :

“A demora do processo pode ser sinal de afronta ao princípio da isonomia não só no caso em que o autor espera o desfecho do processo sem liminar, mas também quando o réu aguarda longamente a solução do conflito com o peso da liminar sobre os ombros.”[17]

Por outro lado, alguns procedimentos que conferem tratamento privilegiado a uma das partes acabam agredindo o princípio da isonomia, e por conseguinte, o do contraditório.  É o que se vislumbra na ação de busca e apreensão de bens, objeto de alienação fiduciária em garantia (Decreto-lei 911/69), onde o réu em contestação só pode “alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais”, na forma do art.3º, § 2º do citado decreto. 

Ora, este procedimento, além de restringir expressamente a matéria de defesa, ainda prevê a possibilidade de apreensão liminar do bem alienado, tudo em nome da celeridade processual.

Neste contexto, resta dizer que as tutelas diferenciadas, que privilegiem determinados grupos econômicos[18], não podem ser justificados pela celeridade processual, que autoriza no máximo um adiamento do contraditório e da ampla defesa, e não a sua desconsideração, que é vedada pela Lei Fundamental. 

Finalizando este capítulo, podemos dizer que os prazos não devem ser exageradamente breves que tornem praticamente inoperante a garantia do direito de defesa ou que limitem de modo irracional o seu exercício, nem demasiadamente longos, de modo a retardar a prestação jurisdicional a tal ponto de torná-la ineficaz aos interesses em conflito. Por outro lado, por questões de racionalidade e conveniência, deve existir uma real possibilidade de serem os prazos utilizados no seu todo.

Neste ponto, deve ser salientada a relação entre efetividade e tempestividade. A idéia é que o princípio da efetividade, próprio da garantia constitucional, venha a colocar requisitos precisos sobre o perfil temporal ou estrutural da Justiça, de modo a assegurar uma eficaz proteção dos direitos, porque um adiamento prolongado do processo poderia, de fato, comprometer de modo irracional a possibilidade da tutela jurisdicional assegurada pela Constituição.

A preocupação de atuar a garantia do processo em uma dimensão de efetividade tem impelido, assim, a maioria dos  doutrinadores mais sensíveis a assegurar ao indivíduo uma concreta oportunidade de recorrer à tutela jurisdicional dentro de um tempo razoável[19].

 

[1] Norma Chrissanto Dias –  Monografia do Mestrado da Universidade Gama Filho.

[2] LASPRO, Oreste Nestor de Souza.  Duplo grau de jurisdição no direito processual civil.  São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995. pág.85.

[3] PORTANOVA, Rui.  Princípios do direito civil.  Porto Alegre : Livraria do advogado, 1995, pág.146.

[4] LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Op. cit.,pág.93.

[5] “Significa o devido processo legal não o direito de ação ou o direito à sentença, mas sim o direito de acesso à justiça e ao recebimento da tutela jurisdicional através de procedimento em lei”. LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Op.cit.,pág.91.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini.  O processo constitucional em marcha- contraditório e ampla defesa em cem julgados do tribunal de alçada criminal de São Paulo.  São Paulo : Max Limonad, 1985, pág.7.

[7] Cf. TROCKER, Nicolò . Processo Civile e Costituzione. Problemi di Diritto Tedesco e Italiano. Milano: Dott A Giuffré Editore, 1974.pág.250 e seg.

[8] Cf. TROCKER, Nicolò . Op. cit., pág.250 e seg.

[9] Cf. Trocker apud MARINONI, Luiz Guilherme.  Novas linhas do processo civil. 3. ed. São Paulo : Malheiros, 1999, pág.258.

[10] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. DINAMARCO, Cândido R. GRINOVER, Ada Pellegrini.  Teoria Geral do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, pág.57.

[11] PORTANOVA, Rui. Op. cit., pág.164.

[12] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A garantia do contraditório na atividade de instrução. Revista de Processo, v. 35,1984, pág.237.

[13] PORTANOVA, Rui. Op. cit., pág.163.

[14] TUCCI, José Rogério Cruz. Garantias constitucionais do processo civil.  1. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999.

[15] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit. pág. 234..

[16] Idem ibidem pág.237.

[17] Idem ibidem.

[18] É o caso da “execução extrajudicial do Decreto-lei 70/66,que permite a execução privada, em verdadeira justiça de mão própria, à medida que autoriza o leilão público de venda do imóvel, dado em garantia sem prévia autorização do Poder Judiciário.” Idem ibidem pág.262.

[19]  TROCKER, Nicolò . Op. cit., pág.250 e seg.       Voltar

 

 

 

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